quinta-feira, 22 de maio de 2014

Análise: A arte de ler ou como resistir à adversidade, de Michèle Petit

"Quando leio, ponho o dedo na ferida e no luto como se toca com mãos nuas a corrente elétrica, entretanto, não morro. Não chego a captar como se opera esse milagre."


Recentemente me propus a ler alguns livros sobre livros, que possuam como tema principal a leitura, os leitores, a literatura, a escrita e/ou os livros. A arte de ler ou como resistir à adversidade foi a segunda leitura concluída desse meu projeto e o primeiro que irei esboçar em análise aqui. Ele veio para fazer exatamente o que espero desse projeto: potencializar meu amor pelos livros e pela leitura e alimentar meu cabedal de conhecimentos nessa área, me dando material mais que suficiente para entender a abrangência dessa poderosa atividade que é a leitura e desfrutar o máximo de minhas leituras.

Os relatos contidos nessa obra são emocionantes e chocantes, tendo o poder primordial de aproximar as pessoas não apenas da leitura, mas uma das outras. As abordagens feitas pela autora me lançaram de cabeça em realidades caóticas vivenciadas por pessoas marginalizadas e traumatizadas pela adversidade, e que encontraram na leitura um sopro de vida.

Sobre a Obra

"Fazemos uso dos livros da mesma forma que um caracol faz uso do rastro que deixa quando vaga, para não danificar o corpo, para não inutilizar a mente."
A antropóloga francesa Michéle Petit põe diante do leitor uma série de relatos envolvendo pessoas que tomaram a iniciativa de levar a leitura aos luares em crise, pessoas que ela denomina apropriadamente mediadores de livros. Trata-se de homens e mulheres que, por meio dos livros conseguem retirar desde crianças e adolescentes à adultos e idosos do estado de "pobreza mental" (e como consequência, sentimental) em que se encontram. São pessoas que vivem ou vivenciaram circunstâncias de crise e nada possuem além da força física para conseguirem levar adiante suas vidas, pessoas que não conseguem enxergar possibilidades. Os relatos são acompanhados por abordagens apropriadas feitas pela autora, informando o leitor a respeito de diversos aspectos que giram em torno da importância e do caráter fundamental da leitura na vida das pessoas, com ênfase nos benefícios da mesma em tempos de crise, de adversidade, em seu incontestável poder reparador e transcendental.

A obra é o resultado de diversas entrevistas realizadas em vários locais de conflitos em algumas partes do globo, um trabalho realizado com paixão e profissionalismo. Bem escrito e com abordagens consistentes dentro dos temas propostos. Um convite para conhecermos o poder dos livros, da literatura, da leitura e diversas formas de artes na recuperação do sentido e da subjetividade de indivíduos marginalizados, assaltados pela calamidade, vítimas de uma sociedade capitalistas onde predominam a pobreza extrema e os livros são algo a se evitar. Pessoas que encontraram, quando menos se esperava, a chance de conhecerem a si mesmas, aos outros e o mundo ao redor. Mortos ressuscitados para a vida pelo sopro da leitura, com a ajuda de mediadores que um dia decidiram resgatá-los por meio dela.

Crise

"Deixei de fazer parte do grupo de jovens que quebravam os vidros das janelas da biblioteca. Agora eu estava do outro lado."

São infinitas as situações que podem nos colocar em estado de desequilíbrio, de desgaste ou de conflito. Infinitas, também, são as intensidades com as quais uma crise pode interferir na vida de um indivíduo, pois cada um reagirá à ela de maneira distinta. A humanidade é uma corrente formada por elos diferentes, o que garante que uma mesma situação surtirá efeitos diversos naqueles que a presenciarem ou vivenciarem. Tudo ocorre na mente. Uma palavra, uma catástrofe, uma perda... os eventos externos invadem e alteram o ambiente interno, a mente. O resultado pode ser avassalador ou  não, algumas mentes estão imunes mesmo à queda dos céus.

Os "muros" que circundam nossas emoções e sentimentos divergem de pessoa à pessoa, desse modo a perda de um ente querido, por exemplo, irá me afetar de maneira distinta em relação a diversas outras pessoas. A minha mente será afeta com base no quanto estou preparado para lidar com o problema, com a crise.

As crises podem ocorrer em pequenos espaços, como no seio familiar, ou em grandes espaços, como em uma cidade destruída pelo terremoto. Elas estão tão presente em nossa realidade que é impossível escapar, pois a própria fragilidade das coisas nos coloca em estado de tensão. Por exemplo, ao mesmo tempo que a gravidez pode ser encarada como um período sublime, de formação de mais uma vida, pode também desencadear preocupações extremas, desespero que será compartilhado, desequilíbrio e uma série de outras consequências. Cada indivíduo lida de maneira diferenciada e esse "lidar" é de suma importância, pois definirá a intensidade das consequências (benéficas ou maléficas) dos traumas que as crises visam inserir dentro de nós.

A grande desvantagem é que as crises são imprevisíveis e complexas demais para serem sequer previstas as suas consequências, pois não há como saber de que forma reagirei a um furacão que destroçou minha casa, matou meus amigos e me deixou perigosamente ferido e isso me coloca em posição passiva, completamente desarmado para enfrentar a situação. Mas nem tudo são trevas. A boa notícia é que podemos saber como outras pessoas reagiram e é esta a nossa maior vantagem e é esse conhecimento que nos momentos de conflito nos enche de esperança, de vontade de continuar, de certezas, de calma e de felicidade.

Os livros nos mandam uma mensagem: você não está sozinho.

Mediadores entre Livros e Homens

"Livros, muitas vezes vindos do outro lado do mundo, vêm nos trazer notícias sobre nós mesmos."

E foi exatamente isso o que aconteceu com as personagens reais que surgem a todo instante das páginas dessa entrevista, elas receberam a visita de homens e mulheres, muitos dos quais já estão "mortos" há séculos, por meio dos livros que eles nos deixaram. Elas descobriram mais sobre si mesmas do que poderiam imaginar. Os livros são a prova de que, sim, nós podemos fazer "magia".

Michèle Petit foi em busca dos homens e das mulheres que resolveram da início à projetos que assumiram e continuam a assumir, proporções gigantescas, trazendo benefícios tão imensos e valorosos, que nem mesmo todo o ouro do mundo poderia compensar. Há coisas mais importante que riquezas materiais, nossa subjetividade ou "identidade" é uma delas.

Dependentes químicos que foram estigmatizados como uma massa abjeta e descartável da sociedade, encontraram nos livros, por meio dos mediadores, o conhecimento a respeito de sentimentos que eles jamais vivenciaram e sequer sabiam que existiam. Como nos diz um deles tempos depois de ter contato com os livros: "Na rua faltavam palavras, o mundo se apresentava agressivo, silencioso para nós".

Jovens e adultos que antes depredavam e, em casos mais extremos, queimavam bibliotecas na França, como protesto pela segregação, hoje as frequentam, encontram nas páginas dos livros verdades, mistérios. Como nos diz outro entrevistado:  "Livros são pontos de referência para compreender muitos aspectos da realidade."

Há muitos outros exemplos de redenção social e individual causadas pelas iniciativas de mediadores ou por encontros inesperados com os livros presentes nas páginas escritas por Michèle Petit. Páginas que vêm nos aproximar dos livros e, acima de tudo, das pessoas. Me vi realizando anotações a todo instante enquanto lia, registrando palavras que guardam a luta e a conquista de pessoas que antes estavam perdidas dentro de si mesmas, cegas, incapazes de lerem os próprios sentimentos. Pessoas que agora "leem problemas como se lessem poemas."

 Por Henrique Magalhães

Alguns dos livros envolvidos no projeto:

História Universal da Destruição dos Livros
O Homem que Amava Muito os Livros
A preparação do escritor
Conversando Com Mrs. Dalloway 
A Questão dos Livros
Como e Por Que Ler
Os Livros Malditos
Os jovens e a leitura
Para ler como um escritor
Do mundo da leitura para a leitura do mundo
Uma História da Leitura
As artes da palavra
O Ano da Leitura Mágica... e alguns outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário